A água passou a valer mais do que o gelo

LIQUIDEZ

Água e gelo são dois estados da mesma mistura, só que ao passar de líquido para sólido você muda algumas características. Para conservar um alimento ou bebida, usa-se o gelo. Ele requer tempo, energia e temperatura específicas para ser feito, armazenado e descongelado, de preferência sem perdas. Se você estiver morrendo de sede agora ou tiver que lavar alguma coisa, você procura a água. Ela tem uma versatilidade maior, mas comprar gelo custa muito mais caro do que água mineral. O gelo é sólido, mas a água é mais densa do que ele. Uma é de uso imediato e o outro é para longo prazo.

Assim também é o seu dinheiro, por isso quem tem emergências a resolver, contas vencendo e oportunidades surgindo, precisa de caixa. Como imprevistos são muito comuns, mesmo em situações estáveis e planejadas, temos a expressão “cash is king” que mostra a importância da liquidez. Não necessariamente dinheiro vivo, porque hoje há diversas formas de pagamento eletrônicas, mas que seja um valor disponível para você poder usar.

Pelo menos uma parte do que você tem deve ser líquida, facilmente convertida em caixa mantendo o valor. Somente uma parte, porque dinheiro na mão pode sumir, pode ser uma tentação para gastos por impulso ou até ser roubado. Dinheiro parado não rende e perde poder de compra para a inflação, da mesma forma que alguns bens vão se desvalorizando com o tempo, como imóveis, veículos ou estoque de mercadorias.

INVESTIMENTOS

Quando você investe, você compra um ativo, trocando o seu dinheiro vivo por títulos ou ações por exemplo. A liquidez é um dos fatores que você sempre deve considerar ao fazer um investimento. Verifique quando e como pode resgatar, sacar ou vender aquele ativo. E se há risco de prejuízo ou atraso nessa operação. Pode ser que você abra mão da alta liquidez e concorde em deixar o dinheiro investido na mesma aplicação por 5 anos por exemplo, em troca de um rendimento maior.

O Mercado de Capitais usa 4 classificações para o grau de liquidez dos investimentos: M1, M2, M3 e M4 em ordem decrescente. M1 é a base monetária, todo o papel moeda em circulação mais os depósitos à vista. M2 é o M1 acrescido dos depósitos a prazo. No M3 adiciona-se as aplicações em fundos, caderneta de poupança e títulos de alta liquidez. M4 inclui também os títulos não tão líquidos.

EMPRESAS E PESSOAS

A sua empresa deve ter um fluxo de caixa bem controlado e com projeções para identificar possíveis lacunas de liquidez e poder tomar uma providência rapidamente. Isso facilita a sua solvência, ou seja, a capacidade de honrar os compromissos assumidos. Uma família ou mesmo um solteiro sem dependentes também devem acompanhar a sua liquidez, fluxo de caixa e solvência de forma bastante parecida com as empresas, só que mais simples. A liquidez deve ser preparada e cuidada por todos porque ela traz um fôlego, uma liberdade de escolha maior.

Há índices de liquidez que a sua empresa deve calcular regularmente para medir a saúde financeira. Liquidez corrente, seca, imediata e geral. E é importante cruzar estes dados com os objetivos da empresa e seus outros indicadores, além do cenário econômico em geral e contexto de alta ou baixa temporada. Um candidato a sócio ou credor certamente irá perguntar sobre os índices, incluindo pelo menos um índice de liquidez.

GOVERNO E BANCOS

Os bancos precisam equilibrar os interesses de investidores, acionistas e tomadores de crédito. Todos querem receber dinheiro, seja na forma de juros, empréstimos ou dividendos com a máxima segurança possível. Um banco precisa manter disponível somente cerca de 20% de cada tipo de recurso, parece pouco mas é o padrão. Quanto maior a liquidez de cada instituição, maiores as chances dela ofertar crédito e com isso aumentar a liquidez da sociedade em geral. Os bancos emprestam dinheiro entre si e do Banco Central e eventualmente podem receber ajuda do Estado. No início da pandemia de 2020 as instituições financeiras receberam do governo R$ 1,2 trilhão para emprestarem e tiveram algumas regras afrouxadas.

Os governantes devem estar atentos à Armadilha de Liquidez, processo identificado pelo economista John Maynard Keynes. Os cortes nas taxas de juros (decididos nas reuniões do Copom) são usados como ferramenta para regular a inflação e os negócios. Nossa taxa de juros estava sempre entre as maiores do mundo, mas de 2008 até 2020 já reduzimos demais, daqui a pouco chegaremos ao zero e a política monetária perderá a força. Keynes defendia que os governos deviam intervir para ajudar a economia.

A liquidez do sistema econômico é a soma das posições de liquidez dos indivíduos, empresas, instituições financeiras e governamentais. Antes do início oficial da pandemia o Brasil tinha R$ 259,5 bilhões. O normal em tempos de crise é a baixa liquidez, mas até 12/05/2020 o Banco Central havia colocado na rua mais R$ 52 bilhões em cédulas, ficando em R$ 311,2 bilhões, o maior número da história do Real. Um dos motivos foi o pagamento de auxílio emergencial à população.

Não sabemos como serão os próximos capítulos de nossa economia, mas por enquanto, a água parece bem mais valiosa do que o gelo.

Cheque especial é especialmente caro

Cheque especial é o limite de crédito ou empréstimo pré-aprovado que fica disponível na conta corrente de alguns clientes, o banco não é obrigado a oferecê-lo. Ao contrário do empréstimo comum que você devolve em parcelas fixas, no cheque especial você tem grande flexibilidade. O valor da sua dívida muda todos os dias e os juros são simples dentro do mesmo mês, mas são compostos de um mês para o outro.

É possível não usar o limite ou usar parcialmente e, segundo o Banco Central, mais de 90% do dinheiro disponibilizado pelos bancos fica parado. Dos R$ 26 bilhões que são usados, quase a metade (45%) é para clientes de baixa renda. É o crédito fácil e rápido, sem burocracia nem garantia e por isso muito popular atualmente. Por outro lado, é um crédito que sempre foi caríssimo e permaneceu assim mesmo depois das taxas de juros e inflação baixas. Bom mesmo é não precisar dele e saber que ele não é renda extra.

Situação 1: Dezembro de 2019 *

Ao “entrar” no cheque especial, o cliente paga em média 12,39% ao mês. Um saldo negativo de R$ 1.000,00 o mês todo, sem entradas ou saídas, resultaria em R$ 120,89 de juros a pagar assim que acabar o mês. Portanto o novo saldo seria de  – R$ 1.120,89. A taxa média diária é de 0,39% e ´portanto cada dia de saldo negativo de R$ 1.000,00 custa ao correntista R$ 3,90.  A taxa anual média atualmente é de 306%, o que significa somar ao valor inicial mais do triplo dele. Deixar a conta parada por um ano começando com – R$ 1.000,00 resultaria em uma dívida de R$ 4.060,00.

Novas regras

Em janeiro de 2020 todas as contas com cheque especial já devem obedecer às regras de cobrar no máximo 8% de juros ao mês, o que significa 0,26% ao dia e 151,82% ao ano. Ainda altos demais, mas já faz diferença conforme simulações 2 e 3.

Os bancos poderão cobrar uma nova taxa mensal de 0,25% sobre o limite de crédito que ultrapassar R$ 500. Essa nova taxa é fixa e independe do uso, da mesma forma que a maioria dos correntistas paga um pacote de tarifas pelos serviços que nem sempre utiliza. Nas contas que já possuem o cheque especial, só será cobrada a partir de junho. Se você não quiser pagar esta taxa, pode pedir para reduzir o seu limite a R$ 500 ou até cortar este produto da sua vida (cancele oficialmente com algum comprovante).

Também será facilitada a portabilidade do crédito, para que você possa trocar a sua dívida de banco ou trocar para outra modalidade de crédito mais barata, com juros menores. Já houve um avanço nas informações de que você entrou no cheque especial, que ele tem um custo e separando-o do saldo real. Já existe uma obrigação de oferecer outros tipos de crédito para quem faz uso constante do cheque especial.

Situação 2: Janeiro de 2020 *

Nova conta corrente aberta em 2020 com limite de crédito de R$ 500 no banco que cobra 8% ao mês ficou com saldo negativo de R$ 300 nos últimos 15 dias do mês. Saldo final = -R$ 311,56 sendo R$ 11,56 os juros cobrados.

Situação 3: Março de 2020 *

Aquela conta que costumava ficar com saldo negativo de R$ 1.000 fez isso nos 31 dias de março, sem entradas ou saídas de dinheiro. Saldo final de -R$ 1.079,63, sendo 79,63 só de juros (melhor que os R$ 120,89 da situação atual, mas ainda altos). Por enquanto não tem o custo de R$ 5 da taxa de 0,25% dos R$ 2.000 de limite disponível, isso só será cobrado deste correntista a partir de junho.

* Na verdade em todos os casos você paga também o IOF – Imposto sobre Operações Financeiras – cujo cálculo é diário e a cada saque.

Você pode mudar a sua dívida

Você é livre para transferir o seu salário, empréstimo, financiamento ou previdência para outra instituição financeira (IF). Essa é a portabilidade. O seu banco atual não pode te negar informações nem a transferência, mas pode negociar, oferecer novas condições que te façam mudar de ideia e continuar com ele. E o banco de destino não é obrigado a te aceitar, ele pode analisar os riscos.

Vamos falar da portabilidade de crédito. Definição de Portabilidade de Crédito (fonte: Banco Central)

“Os clientes bancários têm direito de transferir gratuitamente suas dívidas de um banco para outro. Na prática, a portabilidade funciona como se o cliente tivesse contratado um novo empréstimo em outro banco e, com esses recursos, quitado antecipadamente a dívida no banco de origem. A diferença é que, com a portabilidade do crédito, não há pagamento de impostos, desde que o novo empréstimo não supere o valor da dívida original no banco de origem.”

Entrevistei a Vânia Murari, da Central Cred São Roque sobre o assunto. Central Cred São Roque centralcredsr@gmail.com (11) 4712-6347

Como começa o processo?

Uma vez informado sobre a operação de portabilidade, a IF origem é obrigada a fornecer os dados e aceitar a liquidação por meio de transferência de recursos pelo novo banco credor. Na portabilidade, o contrato original tem que ser transferido nas mesmas condições, ou seja, saldo devedor atualizado e número de parcelas remanescentes (a serem pagas). Você informa o nome da instituição financeira atual, o número do contrato, o saldo devedor, o número de parcelas remanescentes e o valor da parcela paga atualmente.

Em que situação é mais vantajoso transferir o crédito e quando não é?

Quase todos são para reduzir a taxa de juros, mas há casos por motivo de relacionamento com a IF atual, seja por não querer mais o relacionamento ou por algum motivo a IF não libera mais o crédito. Com a redução da taxa de juros ocorre redução de parcelas. No Consignado, reduzindo as parcelas libera mais recursos, ou o desconto será menor na folha de pagamento e o salário líquido volta a aumentar.

Quais são os custos mínimo e máximo da operação?

O consignado não tem custo e o financiamento imobiliário tem o custo do contrato junto à nova IF e o custo da averbação na matrícula junto ao cartório de imóveis (custo reduzido em relação ao pago no início do financiamento). O valor do cartório vai depender do saldo devedor.

Que tipo de pessoa pode fazer a portabilidade do crédito?

Habitação: qualquer pessoa física ou jurídica que esteja com contrato ativo em uma IF. Consignado: qualquer pessoa pode fazer, mas temos que observar qual a espécie (em caso de INSS) e se a convenente possui contrato com a IF destino. Não é porque eu quero portar para o banco X que eu posso, precisa entender a relação convenente / IF.

Qual é o melhor momento para fazer a portabilidade do crédito?

Quando no mercado possuir uma taxa menor que a contratada atualmente ou quando o seu relacionamento com a IF estiver desgastado. Cada modalidade e cada IF tem sua regra que deve ser seguida, ou seja, algumas solicitam um número mínimo de parcelas pagas no contrato vigente, idade, espécie de benefício no caso do INSS, entre outros. O ideal é procurar uma empresa especialista e de confiança.

Cite casos reais interessantes para exemplificar melhor.

Habitação: quem realizou operação de financiamento de imóvel na época em que a taxa de juros estava maior que atualmente, como por exemplo de 2 a 4 anos atrás, está pagando uma parcela elevada comparado a um contratado hoje; então é muito vantajoso pedir transferência para um outro banco com taxas menores, ou renegociar a taxa no banco atual. Tem cliente que fez financiamento em 2016 e tinha uma parcela de R$ 2.250,00 e com a  portabilidade esse cliente passou a pagar R$ 1.725,00.

Consignado: nesse caso foi uma portabilidade com refinanciamento, ou seja, cliente pegou um “troco”, muito comum no mercado de consignado. O cliente tinha problema de relacionamento na IF origem, então essa instituição não liberava nenhum crédito. Quando realizado a portabilidade, foi possível disponibilizar R$ 30.000,00 na nova instituição.

Meus comentários adicionais: o crédito precisa ser usado com muito critério, como sempre reforçamos aqui. Se você estiver viciado em dívidas, não há estratégia mirabolante que compense o vício. Se você estiver sempre pagando parcelas, você não está usando o seu dinheiro (e tempo e energia) da melhor forma. Considere todos os seus números atuais e tendências, considere o valor final e não só a parcela isoladamente.

imagem free de Nick Fewings para Unsplash